Responsabilidade subsidiária e terceirizações na Administração Pública

 É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas. Analisando a literalidade do art. 71, § 1º, da Lei 8.666/93, a regra é a não responsabilização da administração pública pelos créditos judiciais trabalhistas de empregados terceirizados.



Inicialmente, tendo o E. Supremo Tribunal Federal firmado tese vinculante a respeito da matéria de fundo, compete aos demais órgãos do Poder Judiciário tão somente aplicá-la ao caso concreto, conferindo-lhe a devida efetividade. Com efeito, o art. 927 do CPC impõe aos juízes e tribunais a estrita observância da jurisprudência do STF firmada em controle concentrado de constitucionalidade, súmula vinculante, incidente de recurso repetitivo ou em repercussão geral.

Em síntese, não se pode admitir a transferência para a Administração Pública, por presunção de culpa, da responsabilidade pelo pagamento dos encargos trabalhistas, fiscais e previdenciários devidos ao empregado da empresa terceirizada, sequer sendo de se lhe atribuir a prova de que não falhou em seus deveres legais, do que decorreria alguma responsabilização. Assim, é defeso a responsabilização automática da administração pública, só cabendo sua condenação se houver prova inequívoca de sua conduta omissiva ou comissiva na fiscalização dos contratos

Consoante tese firmada pelo Plenário do E. STF, na sessão do dia 30/8/2018, no julgamento conjunto da ADPF 324/DF e do RE 958252/MG, “é lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante” (Tema 725 da repercussão geral). Destacam-se os seguintes fundamentos, sintetizados na ementa do acórdão:


Conforme ressaltado pelo Exmo. Ministro Roberto Barroso, relator da ADPF 324/DF, a terceirização de atividades ou serviços “tem amparo nos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência” e, “por si só, (...) não enseja precarização do trabalho, violação da dignidade do trabalhador ou desrespeito a direitos previdenciários”, de forma “que não se configura relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada” (DJe 6/9/2019, Ata nº 127/2019).

Em sessão do dia 11/10/2018, a Suprema Corte julgou a questão da terceirização de atividade-fim em serviços de telecomunicações - Tema 739 da repercussão geral, no ARE 791.932/DF, oportunidade em que reafirmou o entendimento anterior e fixou a seguinte tese: “É nula a decisão de órgão fracionário que se recusa a aplicar o art. 94, II, da Lei 9.472/1997, sem observar a cláusula de reserva de Plenário ( CF, art. 97), observado o artigo 949 do Código de Processo Civil”.

Em prosseguimento, é preciso destacar que o Plenário do E. Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 635.546/MG, acórdão publicado em 19/5/2021, firmou a tese de que “a equiparação de remuneração entre empregados da empresa tomadora de serviços e empregados da empresa contratada (terceirizada) fere o princípio da livre iniciativa, por se tratarem de agentes econômicos distintos, que não podem estar sujeitos a decisões empresariais que não são suas”. Trata-se do Tema 383 sob a sistemática de repercussão geral.

Ora, o Supremo Tribunal Federal, ao revisitar o tema específico da responsabilidade subsidiária, após o reconhecimento da constitucionalidade do art. 71, § 1º, da Lei 8.666/93, que exime a administração pública nos casos de terceirização de serviços (ADC 16, Rel. Min. Cezar Peluso, DJe de 08/09/11), reafirmou o entendimento anterior, que veda a responsabilização automática da administração pública, só cabendo sua condenação se houver prova inequívoca de sua conduta omissiva ou comissiva na fiscalização dos contratos ( RE 760931, Red. Min. Luiz Fux, julgado em 30/03/17, leading case do Tema 246 de Repercussão Geral do STF).

Na ocasião, ficou vencida a Relatora originária, Min. Rosa Weber, que sustentava que caberia à administração pública comprovar que fiscalizou devidamente o cumprimento do contrato, pois não se poderia exigir dos terceirizados o ônus de provar o descumprimento desse dever legal por parte da administração pública, beneficiada diretamente pela força de trabalho. Ressalte-se que a decisão recorrida do TST, de relatoria do Min. Freire Pimenta, cassada pela Suprema Corte, sustentava expressamente a tese do ônus da prova da administração pública.

Ademais, por ocasião do julgamento dos embargos declaratórios, que foram rejeitados, o STF assentou estar indene de esclarecimentos a decisão embargada, que restou finalmente pacificada pelo Pretório Excelso ( RE 760.931-ED, Red. Min. Edson Fachin, DJe de 06/09/19). Em que pesem tais decisões do Pretório Excelso, a SDI-1 do TST, em 12/12/19, em sua composição plena, entendendo que a Suprema Corte não havia firmado tese quanto ao ônus da prova da culpa in vigilando ou in eligendo da Administração Pública tomadora dos serviços, atribuiu-o ao ente público, em face da teoria da aptidão da prova (TST-E- RR-925-07.2016.5.05.0281, Rel. Min. Cláudio Mascarenhas Brandão).

Além disso, após tal posicionamento da SDI-1 do TST, o STF, por suas 2 Turmas, em reclamações, deixou claro que, de acordo com o figurino dos precedentes da ADC 16 e do RE 760.931, é do reclamante o ônus da prova da culpa in eligendo ou in vigilando da administração pública quanto ao cumprimento das obrigações trabalhistas pelas empresas terceirizadas.

A 1ª Turma, no AgRg-ED-Rcl 36.836-MA (Red. Min. Alexandre de Moraes), assentou que “por ocasião do julgamento do RE 760.931, sob a sistemática da Repercussão Geral, o Plenário desta SUPREMA CORTE afirmou que inexiste responsabilidade do Estado por débitos trabalhistas de terceiros, alavancada pela premissa da inversão do ônus da prova em favor do trabalhador”, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Rosa Weber (julgado em 14/02/20).

Já a decisão da 2ª Turma, por unanimidade, no AgRg-Rcl 37.035-MA (Rel. Min. Cármen Lúcia), registrou que “não se pode admitir a transferência para a Administração Pública, por presunção de culpa, da responsabilidade pelo pagamento dos encargos trabalhistas, fiscais e previdenciários devidos ao empregado da empresa terceirizada”, em hipótese na qual a decisão do TST foi mantida, por entender que o ônus da prova da culpa in vigilando é do reclamante (julgado em 19/12/19)

Assinala-se que a tese de que o ônus da prova quanto à fiscalização do contrato de prestação de serviços não recai sobre a administração pública foi reafirmada pela 1ª Turma do STF da forma mais explícita possível, em julgamento no qual ficou novamente vencida a Min. Rosa Weber, cuja ementa se reproduz abaixo:


Mesmo assim, a SDI-1 voltou a reafirmar o ônus da prova da administração pública, em 10/09/20, no julgamento do processo E-ED-RR-62-40.2017.5.20.0009 (Rel. Min. Márcio Eurico Vitral Amaro), em sua composição completa, vencidos apenas os Min. Alexandre Ramos (que abriu a divergência), Maria Cristina Peduzzi, Aloysio Corrêa da Veiga e Breno Medeiros.

Ora, a partir do seguimento, pela maioria das Turmas do TST, dos precedentes da SDI-1, não só a Suprema Corte foi compelida a erigir o Tema 1.118 de repercussão geral, para tratar especificamente da questão do ônus da prova, de modo a expungir qualquer dúvida quanto ao que ficou decidido na ADC 16, sem, no entanto, determinar o sobrestamento dos feitos, como também continua cassando as decisões do TST que invertem o ônus da prova, sendo paradigmática a decisão a seguir transcrita em seu inteiro teor, a demonstrar a recalcitrância do TST no descumprimento das decisões da Suprema Corte:

Como se vê, a decisão é superlativamente clara e incisiva no sentido de reprovar a orientação que se tem seguido na SDI-1 e na maioria das Turmas, de desobservância dos precedentes do STF, sob a capa de silêncio quanto ao distinguishing feito por esta Corte.

Ora, tendo em vista o caráter vinculante das decisões do STF em temas de repercussão geral, o que não se dá com decisões da SDI-1 do TST, é de se sobrepor aquelas a estas.

Note-se, por fim, que, pela literalidade do art. 71, § 1º, da Lei 8.666/93, a regra é a não responsabilização da administração pública pelos créditos judiciais trabalhistas de empregados terceirizados, e a contemporização do STF, abrindo exceção à regra, fica limitada e balizada pelas decisões da própria Suprema Corte, que, portanto, não comportam elastecimento por parte da Justiça do Trabalho.

Dessa maneira, na medida em que não cabe o reconhecimento da responsabilidade subsidiária de ente público com lastro em declaração de ilicitude de terceirização, tendo em vista os precedentes fixados pelo STF na ADC 16, na ADPF 324 e no RE 958.252.

Por fim, não se pode admitir a transferência para a Administração Pública, por presunção de culpa, da responsabilidade pelo pagamento dos encargos trabalhistas, fiscais e previdenciários devidos ao empregado da empresa terceirizada, sendo que pacífico que o ônus da prova quanto à fiscalização do contrato de prestação de serviços não irá recair sobre a administração pública

Assim, só cabe a condenação da Administração Pública se houver prova inequívoca de sua conduta omissiva ou comissiva na fiscalização dos contratos, sendo ilegal sua responsabilização automática.


Pedro Henrique Keller

Porto Alegre